A Cidade Cativante
Autor: ALEX AZEVEDO DIAS*
(In Memoriam)
O conto foi escrito em 12/01/2014
E o autor faleceu em 20 de setembro de 2014.
Ao saltar da embarcação, deparou-se com a
estátua de um índio mal-encarado, esperando-o de braços cruzados. Apesar de
austero e valente, em seu rosto, transbordava ternura e serenidade. Carmo contornou
aquele monumento improvável e o comparou aos rígidos braços abertos do Cristo
Redentor. Talvez em nada se assemelhassem. A posição do índio suscitava
proteção e cuidado. Os braços do Cristo, frágil abraço, denotava devoção, com
certa dose de desamparo. Carmo observou que o pôr do sol emprestava ímpar
vivacidade à pele de bronze daquele guerreiro indômito. A camada esverdeada
composta pelo tempo implacável, em contato com os últimos raios do astro adormecido, convertera a bravura do cacique em destemido amor.
Quando
tomou consciência de si, ficara mais de meia hora parado em plena Praça
Arariboia, olhando para o alto, contemplando a imponente estátua. Carmo deu uma
olhadinha para cada lado, temendo cair no ridículo. As pessoas passavam
frenéticas, para cima e para baixo, para um lado e para o outro e não se davam
conta daquele inusitado visitante embasbacado pela força do ilustre anfitrião
niteroiense. Ligeiramente constrangido pela cena patética à qual se entregara,
Carmo abandonou a veneração ao monumento de Arariboia e saiu de fininho.
Recuperando-se
da inquietante experiência, atravessou a movimentada Avenida Visconde do Rio
Branco e, novamente, deparou-se, maravilhado, com a arquitetura suntuosa de um
palácio em art nouveau inteiramente restaurado e iluminado. Leu que se tratava
de uma edificação dos Correios, inaugurada com a presença do primeiro
presidente da república brasileira. Consultou o relógio. O tempo corria
velozmente. Não mais permitiria ser sugado por seu deslumbramento sensível. Ajeitou
a gravata, tirou o paletó, arrumando-o no antebraço - com o cotovelo levemente
dobrado para não amassá-lo - e prosseguiu viagem. Faltava pouco tempo para seu
compromisso inadiável e não poderia se atrasar um minuto sequer.
Carmo não quis pegar nenhuma condução. Sabia
que se não se distraísse pelo caminho, margearia a orla sem que corresse o
risco de perder a hora. Tinha quase duas horas para reservar tal prazer a si.
Viu, ao longe, toda a extensão da Ponte Rio/Niterói.
Observou duas estátuas,
também de bronze, sentadas em um banco de concreto. Uma, representando o
presidente Juscelino que, entusiasmado, olhava os projetos arquitetônicos de
Niemeyer. Sentiu a brisa soprada da Baía de Guanabara em seu rosto, amenizando
o calor e enxugando os pequenos brotos de suor.
Passou
por Gragoatá e São Domingos. Ao se aproximar de Boa Viagem não resistiu e
contemplou, timidamente, o Museu de Arte Contemporânea em seu inconfundível
formato de disco voador. Ele foi construído praticamente à beira de um
precipício, desafiando a lógica matemática e a razão humana. Grato pela
fascinante paisagem que se descortinara à sua frente, derramando beleza aos
cinco sentidos, avistou uma pequena igreja no alto de uma ilha próxima ao MAC.
Viu que essa ilha unia-se ao calçadão da orla por uma longa e estreita ponte de
concreto armado. Notou também que abaixo dessa ponte o mar se dividia por uma
fina camada de areia. Convidado por tal fenômeno da natureza aliado às façanhas
humanas, Carmo, que não era católico, entregou-se, emotivo, ao sinal da cruz,
dobrando sutilmente seus joelhos em reverência àquela imensidão.
Fez
uma pequena pausa para fotografar a magistral obra de Niemeyer, símbolo da
cidade de Niterói.
Da praia das Flechas, notou chamativas formações rochosas, conhecidas como Pedra do índio e de Itapuca. Antes de o MAC ser elevado como representante maior da cidade, tais monumentos naturais assumiam a categoria de símbolos máximos da cidade.
Acelerando
os passos, ao invés de continuar seguindo pelo calçadão, já na praia de Icaraí,
virou à esquerda, na Miguel de Frias e a seguiu até pegar a Moreira César desde
o início. Na esquina, em frente a uma padaria, deteve-se diante de uma banca de
jornais. Lá, admirou-se com cartões postais com os mais variados retratos.
Primeiro viu que, perto dali, havia um amplo espaço arborizado e florido, uma
reserva ambiental com um grande chafariz, bem no coração de Icaraí.
Já mais para o fim da Moreira César, Carmo
dobrou à direita, na Oswaldo Cruz e novamente se dirigiu à praia de Icaraí.
Tirou do bolso um bilhete amassado. Espichou o papel até conseguir visualizar o endereço e confirmou sua exata localização. Colocou-se defronte ao condomínio luxuoso, de vinte andares. Enquanto aguardava a oportunidade adequada para entrar, teve sua atenção tomada pelos trajes elegantes com os quais os moradores desfilavam a torto e a direito. Notou que o modo de se vestir daquelas pessoas muito se assemelhava aos cidadãos que circulavam pela Moreira César. Não evitou que um sorriso malicioso escapasse de seus lábios. Mas logo se recompôs. Sabia ser aquele um bairro nobre, embora o dinheiro não fosse sua prioridade. Estava ali para cumprir seu compromisso e ponto final, sem mais nem menos.
Tirou do bolso um bilhete amassado. Espichou o papel até conseguir visualizar o endereço e confirmou sua exata localização. Colocou-se defronte ao condomínio luxuoso, de vinte andares. Enquanto aguardava a oportunidade adequada para entrar, teve sua atenção tomada pelos trajes elegantes com os quais os moradores desfilavam a torto e a direito. Notou que o modo de se vestir daquelas pessoas muito se assemelhava aos cidadãos que circulavam pela Moreira César. Não evitou que um sorriso malicioso escapasse de seus lábios. Mas logo se recompôs. Sabia ser aquele um bairro nobre, embora o dinheiro não fosse sua prioridade. Estava ali para cumprir seu compromisso e ponto final, sem mais nem menos.
Pacientemente,
esperou que a garagem abrisse para acompanhar o veículo que entrasse ou saísse.
Não demorou muito, um automóvel parou. O motorista acionou o controle remoto e
o portão iniciou sua abertura. Carmo, nesse instante, comparou o portão à
abertura cerimoniosa das cortinas de um teatro, convidando-o a subir ao palco.
Estava exultante. Sentia que aquela era sua deixa para o encerramento de grande
espetáculo. Abaixou-se à lateral do carro, tomando cuidado para não ser
identificado pelo espelhinho retrovisor. Paralelamente ao movimento do veículo,
foi se esgueirando lentamente até passar por completo, também sem ser visto
pela câmera de segurança do edifício.
Na
ausência do porteiro, Carmo, fingindo ser um condômino comum para não levantar
suspeitas, sentou-se no sofá, cruzou as pernas e, calmamente, abriu o jornal do
dia. Verificou outra vez o relógio. Faltava apenas cinco minutos para executar
a vítima do oitavo andar. Fechou o jornal, depositando-o sobre os joelhos,
ergueu de leve o corpo e conferiu discretamente o revólver preso pelo cinto da
calça, junto à pele. Quando ia se levantar, estancou subitamente ao ver uma
praia belíssima na capa da revista sobre a mesinha, com tampo de mármore, no
centro da portaria.
Largou
o jornal em cima da almofada do sofá e folheou a revista. Não pôde conter uma
lágrima solitária descendo pelo seu rosto. As praias paradisíacas da região
oceânica de Niterói o enterneceram. Tocaram-no profundamente. Ele não fazia a
menor ideia da riqueza daquela cidade.
Tudo que já tinha visto até então já
fora suficiente para convencê-lo do fascínio daquele lugar. Abriu página por
página. Vislumbrou retrato por retrato. Encantou-se com as praias de Piratininga, Itaipu, Camboinhas e Itacoatiara. Um sentimento tão oceânico quanto o mar aberto invadiu-lhe por completo, intensificando à exaustão as lágrimas de emoção.
Naquele
instante, decidiu: largaria a odiosa vida de matador de aluguel. Diante de
tanta beleza, não valeria a pena ceifar vidas, privando as pessoas da
contemplação pacífica da natureza em seu esplendor e formosura. Carmo contraíra
uma séria dívida com mandantes do crime na Baixada Fluminense e fora
encarregado de desembarcar pela primeira vez em Niterói para assassinar um juiz
de direito em troca de perdão e paz. Decidido a mudar de vida definitivamente,
Carmo guardou a revista em sua pasta e saiu pela porta da frente.
Ao ver o
límpido e cristalino cenário, composto por um azul infinito, deixando ainda
mais visível o Pão de Açúcar e o Corcovado do calçadão da Praia de Icaraí,
entregou-se novamente ao mais copioso pranto.
Carmo seguiu pelo calçadão em direção ao bairro
de São Francisco. Subiu a estrada Fróes até mirar a praia do alto.
Certificou-se que ninguém passava naquele instante, tirou a arma da cintura com
cuidado e, impulsionando bem forte o braço, arremessou-a para o meio da água.
Como não poderia retornar ao Rio de Janeiro, lembrou-se que havia um conhecido
seu que falsificava identidades. Coincidentemente, ele residia em Niterói.
Telefonou. Conversaram longamente. Ele explicou sua situação delicada ao
Petrotski - seu amigo falsificador -, nascido no estado do Paraná e também
amante de Niterói, que há muitos anos fixara residência em Itaipu. Ao ouvir
toda a história atentamente, sensibilizou-se pela causa de Carmo.
Algum tempo depois, Carmo passou a se chamar
Manoel. Petrotski ainda foi além do combinado para ajudar o amigo. Apesar de
ser num lugar distante de Itaipu, numa rua apenas numerada, sem nome e sem
asfalto, Petrotski tinha mais uma propriedade que, mediante uma quantia
camarada, alugou para Carmo morar temporariamente. Favorecendo o amigo financeiramente,
viabilizou seu contato com pescadores da região. Rapidamente, Manoel, que
jamais revelara sua real identidade aos novos amigos, enturmou-se, alugou um
barquinho modesto e se aventurava, toda quarta-feira, no mar aberto, junto às
traineiras e gaivotas famintas, empenhando-se no seu ganha-pão.
Após
muito trabalho, comprou um espaço em sociedade com um camarada seu do mundo dos
pescados no tradicional Mercado São Pedro.
Logo depois, agradecendo com muito
carinho ao amigo Petrotski, deixou a casinha em Itaipu e se
mudou para a Vila Pereira Carneiro no bairro Ponta D'Areia - um
mudou para a Vila Pereira Carneiro no bairro Ponta D'Areia - um
pequeno bairro residencial construído
por trabalhadores da construção naval. Manoel, O Peixeiro, como se popularizara
entre os amigos e clientes da banca de peixe, vivia com um sorriso largo de
orelha a orelha.
Com muito orgulho, em sua certidão de
nascimento falsa, estava a cidade de Niterói como seu berço querido. E de
Niterói, Manoel jamais saíra e nunca mais se recordara que um dia tivera outro
nome.
Nota da editora:
Esse texto está protegido por Direitos Autorais.
O Copyrigth pertence a mãe do escritor.
*******************************************
Sobre o autor
Queremos registrar a nossa homenagem 'em memória' ao jovem de 32 anos, psicólogo, psicanalista e escritor, Alex Azevedo Dias, um niteroiense que deixou vários textos publicados na web.
Em 20 de Setembro de 2014 o escritor sofreu um infarto, na casa da namorada. A cena literária, a qual Alex pertencia e tanto gostava, sente a sua falta... Descanse em paz Alex.
Nosso carinho e sentimento de solidariedade para D. Neide Azevedo Dias, que perdeu seu único filho e grande amigo.
Muito talentoso meu amigo. Estudamos juntos na UFF e fizemos estágio. Saudades do "amigão", como nos tratávamos.
ResponderExcluirEstamos agradecidos por seu comentário.
ResponderExcluir"Amigo é coisa pra se guardar
Debaixo de sete chaves,
Dentro do coração,
assim falava a canção que na América ouvi,
mas quem cantava chorou ao ver o seu amigo partir..."
Eu era paciente dele e ainda me sinto "órfã". Certamente ele se foi com um único propósito: Deus quer junto de Si Seus melhores filhos. Certamente de onde está agora, ele pode ajudar um número maior de pessoas do que aqui na Terra. Mas ainda assim a perda é imensa -- de todos os que faziam parte, de alguma forma, de sua vida; e incomparável e irreparável para sua mãe. Não acho que ele esteja descansando, mas sim ajudando a curar um número muito maior de almas e iluminando o céu com seu sorriso e bondade. Você sempre fará muita falta, meu terapeuta.
ResponderExcluir